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Álbum de Família - Pinturas de Susana Bianchini

por Fernando Lindote - texto publicado no catálogo da exposição "Álbum de Família, 2012. Exposição realizada na Fundação Cultural BADESC, em Florianópolis e em 2013 no Museu Alfredo Andersen, em Curitiba. 

 

A pintura realizada por Susana Bianchini apresenta, desde seu início nos anos 1980, um interesse pela relação entre a fatura marcada pela evidência dos materiais e a possibilidade da representação da figura humana. Nas pinturas desse período inicial, Susana explorou a representação de figuras femininas imersas na atmosfera total do plano pictórico. As grossas camadas de tinta à óleo dos trabalhos implicavam uma correspondência de ordem conceitual na obra, facilmente despercebida por uma observação apressada: o ambiente pesado e espesso de onde essas figuras surgiam condicionava, até certo ponto, sua constituição. As figuras que teimavam em aparecer na superfície densa da tela traziam consigo as marcas desse despregar doloroso da matéria.

 

 Outro aspecto reiterava essa condição da subjetividade que procurava expressão: o modo como essas figuras eram representadas, a partir de estereótipos de sensualidade feminina, constituía outra camada de dificuldade para o aparecimento da figura da mulher. A imagem resultante dessa luta da artista com o meio denunciava a materialidade da tinta que determinava o corpo na tela, assim como a materialidade social que determinava o modelo.

 

Coerente com os interesses de sua pintura inicial, algum tempo depois, a artista enfrenta, com os meios da escultura, o modelo representado na boneca Barbie. Aqui, novamente, a resistência do material e a rigidez do modelo social se antepõem ao conhecimento da figura feminina. Entender onde está o modelo do feminino e que implicações materiais advêm desse processo na construção da imagem da mulher, volta a ser o esforço de Susana através das esculturas que realiza.

 

Entre o período inicial e a pesquisa sobre o modelo do feminino na Barbie, surge um elemento estrutural que até então se preservara em latência. O humor começa a permear os trabalhos. Na pesquisa sobre a Barbie esse humor assume, talvez, sua forma mais cáustica: a ironia. Atravessando a matéria desses trabalhos, o humor faz descolar o conceito da formalização. É pelo humor que sabemos o lugar da forma na concepção de arte de Susana. A forma está na obra assim como a materialidade para manifestar um conceito que atravessa os trabalhos. É através do humor que estabelece um distanciamento crítico ao assunto que elabora em seu trabalho.

 

A produção recente de Susana Bianchini, seu Álbum de Família, apresenta novos problemas e avança no entendimento das possibilidades da imagem pintada. Partindo de informações de diversos campos de significado, a artista organiza na superfície da tela uma nova realidade. Inventa um lugar onde o conhecido se transfigura e onde as coisas do mundo comparecem editadas. Poderíamos reconhecer uma genealogia desses procedimentos que remontariam, entre outros possíveis antecessores, a Manet. Podemos reiterar a composição de Manet como colagem, onde a colocação de cada figura, assim como o tratamento esbatido da modelagem, deixam clara a distância da imitação da realidade.  E podemos lembrar quanto Manet investiu na invenção de uma realidade particular que se constituía na superfície da tela. Nesse aspecto, sua obra, assim como poderia ser a obra de Ingres, instaura, com sua prática, a autonomia da pintura enfatizada a partir do início do século XX. É nessa tradição que pouco a pouco foi se alinhando a concepção de arte de Susana.

 

Nos trabalhos atuais, a construção das figuras deriva, em sua maioria, de fotografias. Há, porém, uma edição das informações provenientes das fotografias: alguns elementos são apagados, outros mudam de proporção ou de localização. O procedimento de cortar e colar, característico do modo de organizar pensamento e texto em nossos dias, aparece nos deslocamentos sofridos pelas figuras entre a fotografia referencial e a imagem pintada.

Susana utiliza imagens de sua família, imagens de viagens ou imagens de fotografias que aleatoriamente aparecem em seu estúdio. Não estabelece uma hierarquia entre essas imagens, pois utiliza tanto fotografias de um momento muito delicado da intimidade de sua vida, como as imagens com os filhos ainda pequenos, assim como pode utilizar uma imagem mais antiga, do casamento de uma tia não muito simpática. Comparecem também na superfície de seu trabalho, imagens desenhadas da observação direta das coisas de seu cotidiano.

 

 A partir desse arquivo pessoal, organiza suas pinturas como mapas de subjetividades, onde as imagens, assim como os sentimentos são permutáveis. Ou como a superfície de um jogo, onde as peças mudam quando o jogo avança e as regras são colocadas em ação. Aqui, porém, as regras são as regras da pintura, e vão se estabelecendo na medida em que a fatura acontece e estabelece um atrito do conceito com a matéria. Entre as imagens referenciais que utiliza e a obra pronta intervém a pintura. Desde a escolha das imagens que irá utilizar numa composição, a edição, os cortes, os acréscimos e a fatura concreta de tinta no tecido, a pintura se realiza.

 

Susana faz uso das imagens como um princípio de organização do espaço, e nesse sentido as figuras e demais elementos são pretextos para iniciar seu trabalho. E carrega concomitante ao processo de fatura, os dados de subjetividade dessas imagens iniciais, que, num certo nível interferem nas escolhas de cor e forma. Ao organizar seu espaço pictórico, submete as figuras às necessidades da composição. Tamanho, cor e localização na tela podem mudar totalmente do referencial fotográfico. Por outro lado, a percepção subjetiva que retém desses elementos aparece como um desestabilizador da composição. Desde dentro, a relação emocional redimensiona seu interesse formal e hibridiza sua pintura, que se mantém dessa forma, entre a autonomia da estrutura e a interferência dos significados. E dessa retenção de subjetividades derivam características que estabelecem o que há de específico em sua pintura. É assim que a artista decide sobre o apagamento das feições dos personagens, a cor e o tom da superfície com que substitui essas feições ou a introdução de uma figura de outro contexto, abrindo possibilidades insuspeitas de relação na cena que constrói, como ao introduzir um gambá no canto de uma imagem de banhistas na piscina.

 

Constrói o espaço pictórico com massas de cor em meia pasta e sobre elas aplica manchas e pinceladas que recortam parte dessas áreas maiores. Em cada trabalho a relação de cor e massa pode mudar, pois cada pintura é uma exploração particular de seus meios. Não se baseia em um projeto geral do que seja sua pintura, mas descobre, trabalho a trabalho, seus aspectos estruturais e os desenvolve. Acompanhar seus trabalhos é testemunhar a busca de um meio expressivo, sua posse e seu abandono em busca de outras problematizações. No entanto, o modo de escolher e aplicar a cor na tela se mantém desde as primeiras pinturas. É possível perceber um ritmo seu, assim como uma pincelada característica, mas há também uma abertura permanente à transformação desses modos em função das novas atribuições que seu trabalho reivindica. As pinturas abrangem uma escala cromática ampla, desde cores frias, sombrias, até o calor iridescente de seus amarelos e laranjas.

 

Alguns elementos laterais às figuras, presentes nas telas recentes, devem sua origem a motivos ornamentais ou padrões decorativos. Mas transpostos e trabalhados sobre a superfície das pinturas adquirem uma função diferente. Com o tratamento marcado pelo gesto evidente, os elementos planos dos ornamentos ganham volume e se projetam na superfície. Desse modo acontece uma inversão de sentido, uma derivação das expectativas dos elementos de uma composição convencional, assim como acontece com as figuras, que nem sempre são os elementos principais da movimentação da superfície. Através do modo como distribui valores enquanto pinta, seja pela área destinada às partes da composição, seja pelo cromatismo ou pelo modo de aplicação da tinta, subverte modelos e convenções do sistema de representação na pintura.

 

 Se prestarmos ainda mais atenção à pintura realizada recentemente, podemos reconhecer outra estrutura que perpassa seu trabalho, desestabilizando noções que poderiam engessar seu processo de invenção: o humor. Presente nas etapas anteriores de sua produção, o humor, agora distante da ironia, agita a imagem, restituindo, por outra via, o significado. E esse aspecto de graça aparece no detalhe, no canto, ou quase escondido pelo jogo tonal: são pequenos animais, brinquedos ou apenas a cor aplicada sobre uma figura. Esses detalhes são como comentários, notas de rodapé, que instauram com sua chegada uma distância tanto aos aspectos formais das pinturas como às camadas de subjetividade que retém: o esverdeado que sua tia-noiva recebe no rosto, ou o pequeno Mickey embaixo do candelabro.

Essas pinturas trazem na franqueza de sua superfície a complexidade de referências inevitável à produção de imagens na atualidade. São pinturas onde oscilam diversas camadas de sentido e significado. O álbum de família que sua pintura simula, guarda esquecimentos, apaga fisionomias, mistura tempos e sentimentos. O íntimo escapou pela mesma porta por onde entrou a pintura, que agora, preguiçosamente instalada na casa, torna-se a única imagem a ser lembrada. A única imagem desse álbum de família.

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