A anonima
por Anna Moraes - texto publicado no catálogo da mostra coletiva "Dizer e ver Cruz e Sousa", 2017. Mostra realizada no Museu Histórico de Santa Catarina em Florianópolis, SC.
Em seus mais recentes trabalhos, Susana Bianchini retrata pessoas. Pessoas no contexto urbano, pessoas caminhando, pessoas no parque, pessoas na rua, pessoas anônimas, pessoas dos álbuns de família. Pessoas.
Para compor a exposição Dizer e Ver Cruz e Sousa, a artista seleciona um trabalho da série Recortes Urbanos ao ler o poema Paranaguadas do poeta. Nesta série, a artista busca no centro histórico da cidade de Florianópolis retratar fragmentos do cotidiano do espaço urbano que passam despercebidos no contexto diário. Fragmentos do cotidiano que se constituem no “outro”: transeuntes, vendedores, moradores de rua que ocupam estes espaços. Susana busca olhar o outro, captando o instante em que se deparou com ele, registrando em fotografia e transformando em pintura. Na pintura ela compõe a imagem capturada com manchas e cores, deslocando a representação fotográfica para uma composição pictórica e subjetiva da artista.
A vida e obra de Cruz e Sousa foram marcadas por contrastes. O preto e o branco, a impossibilidade de exercer determinados cargos políticos por sua cor, uma genialidade aprisionada por dificuldades materiais e a morte por tuberculose, que ainda assim não o impediram de produzir tão rico e vasto material. Dentre tantos poemas, Cruz e Sousa também aborda temas de humor e irônicos em sua obra. No humor, ele brinca com palavras na construção poética, rimando palavras com graça e inteligência, e utilizando a ironia para apontar vícios e questões mundanas, além de denunciar a escravidão no Brasil, tema recorrente em seu trabalho e que ele se posiciona ativamente como abolicionista.
No poema Paranaguadas, Susana Bianchini insere sua personagem anônima, pintada de costas, com uma bolsa no ombro direito, rumo a algum destino de seus percursos diários. No poema, Cruz e Sousa brinca com as palavras, repetindo incessantemente a frase Que importa que seguida de palavras que vão criando rimas Que importa que tu fales, ou que tu files, ou que não cales. O humor é caracterizado no jogo de palavras, mas não sobre o tema que é dedicado o poema. Voltando ao contexto em que vivera, a indiferença dos versos do eu que escreve para o tu, tenha sido talvez a indiferença que sentiu Cruz e Sousa em sua jornada de vida e literária na sociedade em que vivia. Quem se importa com a fala do negro? Ou com sua labuta diária, ou sua melancolia de vida? Era um anônimo.
A personagem anônima segue seu caminho assim: anônima. Inserida na paisagem ao ponto de se tornar pertencente a ela, quase invisível, sem que se importe sobre sua fala, seu contexto de vida ou até mesmo o caminho que ela segue: é um ser anônimo na paisagem, apreendida pelos olhos da artista que se dedica a pintá-la, mas sem que ela deixe de ser uma anônima com isso.